Adão teve ancestrais?
Por Dr. Gerald Schroeder*
A revista,
Scientific American traz, com
freqüência, artigos que tratam de algum aspecto da origem humana. Mas nenhum
jamais menciona Adão e Eva.
A omissão não surpreende. As pesquisas
científicas lidam com aspectos físicos da realidade, enquanto a criação bíblica
de Adão está relacionada com a espiritualidade da neshamá, a alma da humanidade
insuflada por D’us em Adão, há quase 6.000 anos, em Rosh Hashaná. Esta é a
criação singular descrita em Gênese 1:27.
E o corpo
de Adão? Será que também foi uma criação especial? Ou será que existe a
possibilidade do corpo humano ter-se desenvolvido através dos tempos, até se
tornar um recipiente capaz de receber e conter a neshamá, a alma humana? (A
título de esclarecimento, o termo “Adam” refere-se a homem e mulher, como menciona
a Bíblia em Gênese 5:2, algo como “ser humano”).
Anatomicamente,
o corpo humano parece de fato estar relacionado com formas de vida menos
complexas. Muitas das enzimas que controlam as funções humanas são réplicas
quase perfeitas das encontradas em outros filos, ou reinos. O gene que controla
o posicionamento e a orientação do braço humano é encontrado em todos os
vertebrados e também nos insetos. A semelhança é tamanha que quando porções
deste gene humano são implantadas no genoma da mosca drosófila, determinam o
posicionamento e a orientação da asa da mosca. O mesmo serve para os genes que
controlam o desenvolvimento do olho e um grande número de outros. Estes genes
têm mais de cem pontos ativos. A semelhança entre eles pode não ter sido mera
coincidência. Para os cientistas, estes fatos indicam a existência de um
ancestral comum. Os ossos dos membros inferiores do crocodilo e a nadadeira da
baleia bicuda são os mesmos do braço e mão de um homem; diferem no comprimento,
é claro, mas todos os ossos existem. A estrutura do cérebro humano espelha o
cérebro de ratos e macacos. O embrião humano desenvolve uma bolsa de gema
semelhante à gema das ovas dos peixes, a seguir uma cauda e, então, a pele
prega-se de forma semelhante às fendas das guelras. A ontogenia do feto humano
parece ser uma recapitulação da filogenia, lembrando sempre que, em cada
estágio, é a estrutura primitiva ou juvenil – e não a adulta – que se forma no
feto.
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Apesar de
serem escassos e incompletos os fósseis atribuídos ao Homo habilis e ao Homo
erectus, quando se alcança o estrato de 50.000 anos atrás, muitos fósseis do
“homem de Cro-Magnon” são encontrados em número suficiente para encher os
museus. O fóssil do “homem de Cro-Magnon” é uma cópia exata do esqueleto do
homem moderno, inclusive no formato e capacidade cranianas.
As
publicações científicas sobre esses fósseis e os artefatos a eles associados
não são fruto da maquinação de alguns cientistas loucos. Existem evidências
esmagadoras tanto sobre a invenção da agricultura, há 10.000 anos, como da
tecelagem, há 9.000 anos, e da olearia, há 8.000 anos. Existem pinturas em
caverna que datam de 10 a 30 mil anos atrás. Do ponto de vista teológico,
desmentir estas evidências é contraproducente.
Aliás,
não há por que negá-las, desde que acreditemos que sejam válidas as
interpretações bíblicas do Talmud feitas por grandes sábios como Onkelos,
Rashi, Maimônides e Nachmânides.
A
primeira objeção à possibilidade de Adão ter um ancestral é temporal.
Agricultura há 10.000 anos? Como pode ser verdade, se afirmamos que neste Rosh
Hashaná, setembro de 2002, o mundo completará 5763 anos? Onde ficaram os anos
que faltam? Em Leviticus Rabá (29:1), como em outras fontes, constatamos algo
com que todos os sábios concordam: Rosh Hashaná comemora a criação da alma de
Adão e os “Seis dias da Gênese” não estão incluídos nos anos do calendário. No
entanto, o Talmud (Haguigá 12A) e Rashi, baseando-se no versículo “Era tarde e
era manhã, um dia” (Gênese 1:5), informam-nos que os dias da Gênese são de 24
horas, desde o “primeiro dia”. Se cada dia tem 24 horas, por que então excluir
esses seis primeiros dias, de 24 horas, do restante dos dias – também de 24
horas – que se seguem à criação de Adão? Nachmânides nos dá uma resposta: estes
primeiros seis dias contêm todas as eras e todos os segredos do universo
(comentário em Êxodo 21:2 e Levítico 25:2). Foi necessária a descoberta de
Einstein sobre a relatividade do tempo para resolver o aparente paradoxo: como
poderiam todas as eras do universo estar contidas em apenas seis dias, de 24
horas cada? Se olharmos a Criação de uma maneira retrospectiva, usando o hoje
como ponto de partida, nosso imenso universo aparenta ter de 10 a 20 bilhões de
anos. Mas se olharmos para a Criação projetando-a para o futuro, da forma como
é descrita no capítulo 1 do livro Gênese, visualizando o universo a partir de
uma época em que seu tamanho era 1.012 vezes menor do que é atualmente, ou
seja, a partir do primeiro dia, o universo pareceria ter meros seis dias de
vida. Esta é a natureza de “tempo” em um mundo em que as leis de relatividade
fazem parte das leis da natureza.
A
interpretação padrão do redshift (o deslocamento para o vermelho, fenômeno
causado pelo aumento do comprimento da onda de radiação e a redução simultânea
da freqüência de radiação) – como efeito da expansão do universo – prevê que o
mesmo fator de deslocamento aplica-se a índices observados de ocorrência de
eventos distantes, mesmo quando a época é tão anterior que o fator não possa
ser observado na radiação detectada. Então o tempo da existência da agricultura
é de 10.000 anos e das pinturas nas cavernas de 30.000 anos. A pergunta é se estas
invenções anteriores a Adão ameaçam a visão da Torá sobre nossas origens.
A união de teologia e
paleontologia -
“E D’us
disse: Façamos o homem (em hebraico, Adam)” (Gên. 2:7); “E D’us criou o homem (em hebraico, Adam)”
(Gên. :27)Aqui a
Torá nos ensina que Adão é “feito” e “criado”. Nós até sabemos a matéria-prima
utilizada para sua produção. “D’us formou o homem do pó da terra” (Gên. 2:7).
Mas se analisarmos paralelamente duas passagens da Bíblia: “No início, D’us
criou o céu e a terra” (Gênese 1:1) e “pois que em seis dias D’us fez os céus e
terra” (Êxodo 31:17), constatamos que enquanto o uso bíblico da palavra
“criação” sugere uma ação instantânea de D’us, “fazer” na linguagem bíblica é
um processo que exige tanto matéria quanto tempo, como está dito: “pois que em
seis dias”. Com o passar do tempo, algo foi criado - Adão, mas
este ser não estava completo. Faltava-lhe receber a alma da vida humana. Se a
formação e o desenvolvimento do homem – de Adão – foi um processo que durou um
milésimo de segundo ou milhões de anos, não é algo que a Torá deixe claro.
Alguns versos nos dão uma pista, talvez uma resposta definitiva.
O Talmud
(Eruvim 18A) se detém sobre o nascimento de Set, terceiro filho de Adão e Eva,
analisando por que a Torá relata duas vezes seu nascimento.
“E tornou Adão a conhecer sua
mulher, e ela deu a luz um filho a quem chamou Set” (Gênese 4:25).
“E viveu Adão 130 anos, e ele
teve um filho à sua semelhança e forma. Ele o chamou de Set” (Gênese 5:3).
Segundo o
Talmud, estes dois versos revelam que, após o assassinato de Abel por Caim,
Adão e Eva se separaram maritalmente por 130 anos, e somente então Adão
deitou-se “novamente” com Eva. Durante estes 130 anos, Adão procriou filhos com
outros seres, não com Eva. O Radak comenta que esses filhos eram de fato
crianças. Faltava-lhes, no entanto, a neshamá, a alma, para torná-los seres
humanos. Maimônides (Guia 1:7), baseado em Eruvim e no Zohar, descreve estas
crianças como sendo seres humanos em forma e inteligência, mas nada humanos em
espiritualidade.
Nachmânides
concentra-se num prefixo supérfluo, lamed, em hebraico, que transmite a idéia
de transformação através de uma ação externa. No caso, o insuflar da alma.
Assim, “... e soprou por suas narinas a neshamá da vida e Adão transformou-se
em uma alma viva”.
Segundo o
comentário de Nachmânides, um dos maiores sábios e cabalistas, a preposição
“em” é usada para indicar uma mudança na essência da personalidade e “pode ser
que o verso esteja afirmando que Adão era um ser vivo completo e a neshamá o
transformou em outro homem”. Outro homem! De acordo com Nachmânides, havia um
homem antes da criação da neshamá, mas aquele ser hominídio não era exatamente
humano.
Onkelos
resumiu tudo isso, 400 anos antes do Talmud e mil anos antes de Nachmânides. A
expressão nefesh chayá, uma alma viva, aparece três vezes nesta porção da Torá:
para animais que vivem na água (Gên. 1:20), para animais que vivem sobre a
terra (Gên. 1:24) e para humanos como “... em uma alma viva” (Gên. 2:7). Nos
primeiros dois casos, Onkelos traduz o termo literalmente, “uma alma viva”. Mas
para os seres humanos, por causa da preposição “em”, Onkelos traduz o termo
como “e Adão transformou-se em um espírito falante”.
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As primeiras grandes civilizações surgiram na área conhecida como
Crescente Fértil aproximadamente 5000 à 6000 anos atrás.
Na mesma época na qual o homem desenvolveu a escrita e também
a época na qual a Bíblia cita o nascimento da Neshamah de Adão. |
A
capacidade de se comunicar espiritualmente é o que faz os homens serem diferentes
de todos os outros animais. Não é nossa força, nem nossa inteligência. Mas
nossa espiritualidade. A fala é, nos homens, o elo entre os aspectos físicos e
espirituais da existência. É a neshamá que faz esta ligação e nos impele a
sentir a unidade transcendental que permeia toda a existência e da qual trata o
Shemá: “Ouve, Israel, o Eterno é teu D’us, o Eterno é Um”. A unicidade
transcendental é a marca do Eterno. Hominídios, com feições humanas,
co-existiram e precederam Adão.
Os
antigos comentaristas bíblicos estavam cientes dessa realidade. A descoberta de
seus fósseis não constitui surpresa para a Torá. Na definição bíblica, um homem
é um animal – um hominídio – no qual foi insuflada a alma criada, a neshamá. Apesar
de a neshamá não deixar nenhum vestígio fossilizado para provar sua aparição na
história da humanidade, o efeito de sua criação está claramente gravado nos
achados arqueológicos. A escrita, o comércio e o surgimento das grandes cidades
datam de 5.000 a 6.000 anos atrás, a época de Adão. A escrita foi criada para
satisfazer as necessidades de se manterem registros sobre o comércio; e o
comércio, por sua vez, foi criado para satisfazer as necessidades materiais das
grandes cidades. A pergunta que permanece sem resposta, então, é: por que as
grandes cidades emergiram nesta época?
Minha
sugestão de resposta é que a espiritualidade dos humanos concedida pela neshamá
e o desejo de transmitir esta espiritualidade para os outros foi a força motriz
que transformou a civilização de grupos de aldeias formadas por clãs em
cidades, como Uruk e Ur, na Mesopotâmia.
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*
Gerald Schroeder obteve os titulos de Bacharel, Mestre e Doutor pelo
Massachusetts Institute of Technology (MIT). É autor dos livros Genesis and the
Big Bang, sobre a descoberta da harmonia entre a ciência moderna e a Bíblia,
editado pela Bantam Doubleday e já traduzido em sete idiomas; The Science of G-d
e The Hidden Face of G-d, editados pela divisão Free Press da Editora Simon
& Schuster. Leciona na Faculdade de Estudos Judaicos “Aish HaTorah”
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